Mariana Destro: Jardim
curadoria de Marília Panitz
15/9—4/10/18




A sala da casa da avó recoberta de tacos de madeira dispostos no desenho geométrico... memória de outros tempos, na casa modernista... alguma tradição... Longe.

Os slides desbotados pontuam-despistam a trajetória da família: como olhos transparecendo um passado vivido somente pelos vestígios.

Os livros do avô, ensino da moral, em tempos nada éticos,1 agora transformados pela mão da artista, contam outras histórias. Essas se misturam a memórias recolhidas dos livros — destinos possíveis como os traçados no labirinto-livro de Ts’ui Pen, seu jardim das veredas que se bifurcam2 (como o de Borges, que o inscreve na literatura).

A herança recebida é contaminada pelas outras, capturadas na tela de um celular, outra presença que estabelece a união cindida entre ocidente e oriente (como nos propõe Borges). A arte do kinbaku3 ocupa (ilustra) as páginas amareladas, antes percorridas por olhares-aprendizes do status quo, sem liberdade (seria o erotismo uma forma radical da ética, como nos propõe Bataille?4). Aqui se apresenta o presente... tempo.

Do corpo-paisagem, horizonte sobre a estampa de folhagens (a costela de adão), a ficção construída sobre a própria imagem da artista pisca quase imperceptivelmente para nós (como nos pisca a moça em meio a imobilidade construída em filme, por Marker5). Da imagem, se extrai a legenda, relato autorreferente da passagem da infância à vida adulta. Pontuada pela fumaça, ela se confunde com as imagens dos corpos-areia de Hiroshima, meu amor6 (aqui, cisão incontornável proposta por Resnais). As janelas que se abrem sobre a imagem (como não lembrar do Livro de Cabeceira7, versão de Greenaway para o mesmo encontro-desencontro), são uma mistura de belos autorretratos em fragmentos e a (desagradável?) visão dos exercícios de camming8 — sexo virtual para qualquer um e para ninguém, versão contemporânea dos peep shows (quase insuportáveis)... solidão extrema. Lugar de reconhecimento roubado aos poucos e insistentemente (como na casa tomada de Cortázar9, aquela que a artista sutilmente propõe como parábola da casa da avó).

À frente do labirinto de Mariana está o Jardim — como em toda casa — e ao centro dele o grande nó de palha da costa10: lá, do outro lado do mundo, a mais na arte do sexo; aqui, ecos do corpo submetido pela escravidão... eros e tânatos... como não podia deixar de ser. E a jiboia, do jardim, vai se imiscuindo na casa-labirinto.

Marília Panitz



© Jean Peixoto


1    A disciplina Educação Moral e Cívica foi estabelecida como obrigatória no Brasil em 1936, durante a ditadura Vargas. A partir do Golpe militar de 1964, a disciplina é moldada de acordo com as maneiras, estabelecidas pelo Estado, como deveria ser o comportamento do cidadão de bem perante a sociedade. Com a redemocratização do país ela deixou a grade curricular.

2    “Deixo aos vários futuros (não a todos) meu jardim das veredas que se bifurcam [Ts’ui Pen] (...) quase de imediato compreendi; o jardim das veredas que se bifurcam era o romance caótico; a frase vários futuros (e não todos) sugeriu-me a imagem da bifurcação no tempo, não no espaço (...) o jardim das veredas que se bifurcam é uma enorme charada, ou parábola, cujo tema é o tempo; (...) é uma imagem incompleta, mas não falsa, do universo tal como o concebia Ts’ui Pen.” Jorge Luis Borges, O Jardim de Veredas que se Bifurcam, em FICÇÕES (1944).

3    Sobre Kinbaku: Shibari é um verbo japonês que significa amarrar ou ligar. É uma expressão que tomou um sentido diferente no século XX, quando o uso da corda (nawa em japonês) começa a ser utilizada no contexto do uso do shibari para fim erótico, o Kinbaku, palavra japonesa para “bondage” ou ainda Kinbaku-bi, que significa “o bondage bonito”. É um estilo japonês de amarrações sexuais que envolve desde técnicas simples até as mais complicadas de nós, geralmente com várias peças de cordas (em geral de 5 mm a 8 mm, sendo a mais tradicional a de 6mm) e que podem ser de materiais diferentes, sendo a tradicional corda japonesa utilizada para o Shibari, a de juta. (Wikipédia, consultada em 09/09/2018)

4    “Não creio que o homem tenha alguma chance de jogar um pouco de luz sobre as coisas que o assustam antes de dominá-las. Não que ele deva ter esperança de um mundo onde não existirá mais razão para ter medo, onde o erotismo e a morte se acharão no plano dos encadeamentos de uma mecânica. Mas o homem pode ultrapassar o que o assusta, pode encará-lo de frente. (...) Creio que o erotismo tem para os homens um sentido que a abordagem científica não pode alcançar. O erotismo só pode ser objeto de estudo se, em sua abordagem, for o homem o abordado. Especialmente, ele não pode ser abordado independentemente da história do trabalho, independentemente da história das religiões. (...) Do erotismo é possível dizer que ele é a aprovação da vida até na morte. Para falar a verdade, isto não é uma definição, mas eu penso que esta fórmula dá o sentido do erotismo melhor que uma outra.” Georges Bataille, Prefácio e Introdução de O EROTISMO (1957)

5    Em La Jetée, o cineasta conta a história de uma experiência pós guerra nuclear pelo qual usam um homem para realizar a viagem do tempo usando uma série de fotografias executadas como fotomontagem. Em um único momento, a protagonista, deitada na cama que divide com o homem do futuro, pisca. O curta metragem, concebido em preto e branco, por montagem de fotos e um momento de filme, em meio a Nouvelle Vague francesa, tornou-se um ícone do cinema de arte. Chris Marker (1962).

6    Filme franco-japonês de 1959, dirigido pelo cineasta Alain Resnais, com roteiro de Marguerite Duras. É a história de uma mulher francesa, atriz e casada — vivendo seu último dia em Hiroshima, após lmar um documentário sobre a paz, quinze anos após a bomba nuclear — e seu relacionamento amoroso casual com um japonês, arquiteto e também casado. O filme fez uso inovador de flashbacks — as memórias da mulher de uma outra e trágica história de amor que viveu, no interior da França, ainda na guerra, com um oficial alemão que morre. Ela paga o preço da traição à pátria, sendo exposta à cidade depois de ter seus cabelos raspados (castigo à traição). É um dos grandes ícones do cinema francês da Nouvelle Vague. Alain Resnais, HIROSHIMA MON AMOUR (1959)

7    Baseado no Livro do Travesseiro da escritora japonesa Sei Shōganon. “Greenaway transpôs a ação do filme para a atualidade, utilizando os motivos estéticos e plásticos que sempre caracterizaram o seu trabalho. Tal como em outros dos seus filmes em que as personagens femininas são as mais fortes, também aqui Nagiko é a personagem que começa passivamente por ser o ‘papel’, acaba por se transformar perversamente na ‘pluma’. Um filme que pode ser lido como uma metáfora de como o poder sensual da escrita e da literatura pode levar ao êxtase físico.” (Wikipédia) No filme, o cineasta usa as “janelas” para, na mesma tela da narrativa, inserir ações paralelas. Peter Greenaway, O LIVRO DE CABECEIRA [The pillow book] (1996)

8    Em um site da internet podemos encontrar as diretrizes de como se tornar uma camgirl ou um camboy, através da adult camming. Ou seja, uma espécie de profissionalização da prática de auto-filmagem em atos sensuais para consumo em sites especializados. Parece que vivemos uma espécie de peep show sem que seja necessário o deslocamento, nem a criação de estrutura física. Também há a relação de trabalho comum aos tempos de hoje: sem maiores vínculos.

9    “Gostávamos da casa porque, além de ser espaçosa e antiga (as casas antigas de hoje sucumbem às mais vantajosas liquidações dos seus materiais), guardava as lembranças de nossos bisavós, do avô paterno, de nossos pais e de toda a nossa infância. (...) Gostávamos de almoçar pensando na casa profunda e silenciosa e em como conseguíamos mantê- -la limpa. Às vezes chegávamos a pensar que fora ela a que não nos deixou casar. (...) Andei pelo corredor até car de frente à porta de mogno entreaberta, e fazia a curva que levava para a cozinha quando ouvi alguma coisa na sala de jantar ou na biblioteca. (...) — Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte dos fundos. (...) Estávamos com a roupa do corpo. Lembrei-me dos quinze mil pesos no armário do quarto. Agora já era tarde. Como ainda cara com o relógio de pulso, vi que eram onze da noite. Enlacei com meu braço a cintura de Irene (acho que ela estava chorando) e saímos assim à rua. Antes de partir senti pena, fechei bem a porta da entrada e joguei a chave no ralo da calçada. Não fosse algum pobre-diabo ter a ideia de roubar e entrar na casa, a essa hora e com a casa tomada.” Júlio Cortázar, Casa Tomada, em BESTIÁRIO (1951)

10    É a fibra de ráfia conhecida como ìko pelo povo do santo. É extraída de uma palmeira chamada Igí-Ògòrò pelo povo africano e que, no Brasil, recebe o nome de jupati. No candomblé, representa a eternidade e transcendência, como prova da imortalidade e da reencarnação, sendo utilizado na confecção das roupas dos orixás, em especial Obaluayê e Omolu. Seu uso é indispensável na iniciação (feitura de santo). (Wikipédia, consultada em 09/09/2018)