Luciana Ferreira: Objetos-poema
curadoria de Graça Ramos
11/10—1/11/18




Construir espaços significa habitá-los? Eis a questão que norteia a exposição de Luciana Ferreira. A artista nos convoca a estruturar silêncios. Palavras acenam como abrigo. O vazio flutua nas paredes, repousa o olhar. Incisões ampliam o mundo. Um chamado ao essencial: habitar, ser, poeticamente.

Ao aceitar o generoso convite de Gisel Carriconde para fazer parte do Ciclo Curare, pedi que me indicasse nomes de artistas com quem pudesse dialogar. Ágil, ela me sugeriu Luciana Ferreira (Brasília, 1970) e me enviou imagens da produção da artista. Marcamos uma reunião de apresentação, mediada por nossa anfitriã, no simpático café Antonieta. Ali, Luciana e eu descobrimos muitas afinidades. O amor à poesia, um olhar atento para os vazios, um discurso rigoroso sobre as solidões de Brasília.

Em uma segunda reunião, agora na Padaria La Boutique, perguntei-lhe sobre obras inéditas e indaguei qual gostaria de expor na charmosa vitrine da deCurators. A partir dessa indicação, eu poderia escolher as que estariam no interior da galeria, estabelecendo o discurso para a exposição. Fui apresentada ao vídeo Leitura. Nele, com a ajuda de uma pinça de sobrancelha, a artista escava um exemplar de A Mesa, de Francis Ponge (1899-1988).

Ao filmar a ação, Luciana deixou em destaque uma página em branco do livro, o que reforça a gestualidade da mão e amplia a força da palavra espaço, que surge ao fim do ato. O poema, elaborado ao longo de sete anos, pode ser lido como uma representação diária da luta do autor, inclusive de seu corpo físico – o que inclui evocações do silêncio e da morte –, para conseguir compor com palavras a mesa. Em sua ação escultórica, a artista mergulha na materialidade do volume-livro para resgatar o signo espaço, ampliando-o na tela branca e também na reflexiva vitrine.

A visão do vídeo provoca uma série de perguntas à Luciana. Ela recorda o pai, o arquiteto Marcílio Mendes Ferreira (1936- 2011), autor de alguns dos mais belos e elegantes prédios da Brasília modernista. Conta-me que teve noção do que era espaço e estética quando, na entrada da adolescência, abriu um livro da biblioteca paterna sobre a arquitetura do mexicano Luiz Barragán (1902-1988) e se deparou com a imagem de um recinto vazio, a céu aberto, cujas paredes limpas ganhavam volumetria graças às cores distintas, às dimensões diferenciadas e ao jogo de sombras. Apenas um diminuto e prosaico objeto quebrava a combinação estabelecida: uma torneira.

Mesmo sem ver as demais obras de Luciana, corroboro a ideia de usar o vídeo Leitura na vitrine. Sei que é prematura a minha decisão, mas gosto de pensar com a intuição. Aos poucos, a artista me mostra uma série de pequenas criações que, em seu conjunto, formam espécie de biblioteca em que livros e poemas são transformados em novos objetos. Esculturas de papel que a artista constrói, sempre a partir dessas páginas. Pequeninas, brotam de gestos entre o espontâneo e o modelado. São as obras Um poema, Outro poema, Mais um poema.

Conheço desenhos que recordam caligrafias flutuantes, pois ocupam apenas o centro do papel. Escolho o intitulado Desenho escrito. Vejo ainda duas páginas de livro rasuradas com fita corretiva. Em uma, aparece apenas a letra “G” várias vezes repetida e a pontuação imediatamente posterior a ela. Em outra, as letras se alteram. Quase notas para quase pensamentos parte do poema de Gertrude Stein “A portrait of one - Harry Phelan Gibb” e da tradução para o português feita por Augusto de Campos. Novamente, percebo uma evocação ao vazio. Uma partitura que omite o poema, mas traz de volta sentidos – “algum um sabendo que tudo é saber que algum um é alguma coisa” – provocados pela poeta.

As páginas mascaradas dos poemas recordam-me trabalhos de Mira Schendel, as monotipias em que brincava com letras e palavras, jogando com a ideia da transparência. As pequenas esculturas remetem-me a Joan Brossa, artista que explorava potencialidades estéticas de materiais os mais variados e triviais. Luciana deseja conhecer o artista catalão, e lhe empresto Joan Brossa: o la revuelta poética.

Enquanto as obras são manuseadas com extremo cuidado, devido à sua delicadeza, realizo anotações-rabiscos em meu caderno de notas – antiga prática dos tempos em que atuava no jornalismo: 1) Identifico em todos uma vontade de assumir o vazio como lugar de significação; 2) O mínimo de matéria a convocar poesia; 3) Conversar com Luciana sobre a possível influência de sua orientadora no doutorado em Artes Visuais que realiza, Karina Dias, e seu olhar para a paisagem.

Degusto um suco integral de uva e indago se Luciana teria lido “Construir, habitar, pensar”, de Martin Heidegger. Explico que associei sua produção àquela arquitetura poética. Claro, no mestrado em Filosofia, ela entrara em contato com o texto. Como eu havia feito essa leitura em espanhol, pedi que fizesse uma cópia da tradução em português que consultara.

Solicitei também poemas de Gertrude Stein, aquele “Um retrato de um - Harry Phelan Gibb”, e. e. cummings (“oDE”) e John Cage, “Lecture on Nothing”. Os três utilizados na confecção de obras eleitas para a exposição. Em todos, perscruto a ideia do vazio, mais clara no título desse último, que só venho a conhecer mais tarde, pois o identificava erroneamente como Silence, nome do livro em que está inserido.

Em reunião seguinte, agora no interior da deCurators, entregues os papéis, veio a surpresa. Nós duas tínhamos sublinhado praticamente as mesmas frases e elaborado questionamentos parecidos. “Habitar”, disse Heidegger, “é bem mais um demorar-se junto às coisas”. Também é “ser trazido à paz de um abrigo” e “permanecer pacificado na liberdade de um pertencimento, resguardar cada coisa em sua essência”.

Pensando que, em suas origens remotas, construir significa habitar, sugiro que Luciana construa uma exposição para além das obras escolhidas: um ambiente na galeria que projete zonas de silêncio, crie espaços, vazios para o devagar (“Slowly we are getting”, ressoa o estribilho do poema de Cage) e o devanear (“que a liberdade ecoe”, à maneira do “Poema, ou a beleza fere o sr. Vinal” de cummings). Recomendo brincar com o claro-escuro nas paredes, proponho deixar os cobogós serem o que são: elemento de ventilação. Mas a parede frontal a eles receberá cor idêntica e acolherá as esculturas-poemas. Elas poderão ser lidas como objetos isolados e independentes ou como uma série apresentada em conjunto.

Não sendo habilidosa para desenhar, rabisco rapidamente o que penso para o projeto expográfico. Pergunto se ela teria algum arquiteto que pudesse tornar o esquema mais organizado. Gosto de espaços medidos, de uma racionalização que ajude na hora da montagem. Penso uma exposição-abrigo em que o jogo de luz acolha e leve o olhar a repousar.

Na nossa próxima reunião, sou apresentada a Renan Monteiro (1990), sobrinho de Luciana, neto, portanto, de Marcílio e arquiteto como o avô. Ele nos apresenta um layout da expografia e ajuda a solucionar a forma de instalar o vídeo da vitrine. Luciana e eu desejamos que a tela se mimetize com a parede, ampliando o espaço a ser escavado, moldado, possibilitando que cada um que lhe assista forje o seu habitar da maneira mais poética possível. Novamente, recorro a Heidegger, agora com o capítulo “...Poéticamente habita el hombre”, inspirado no poema de Hölderlin.

Sentados no café Clandestino, observo a força das heranças familiares e penso que há uma obra de Luciana, que não escolhi por não ser inédita, um vídeo de uma hora de duração, que é um trabalho de luto. Mais ainda, trata-se de uma luta, à semelhança da mesa de Ponge. Ela apaga com lápis borracha o famoso artigo do pai “Brasília, um patrimônio ameaçado”, publicado logo após a morte do arquiteto, em 2011.

Descubro mais tarde, em uma troca de mensagens por WhatsApp, que, no hospital, Marcílio mostrava-se ansioso para ver a publicação do texto, análise do crescimento desordenado do Distrito Federal, das ameaças ao cinturão verde, do risco de perdemos a visão do céu e do horizonte que tanto apreciamos. “O Distrito Federal também necessita de um planejamento regional consciente, que leve em conta a necessidade de uma extensa área de tamponamento, preservando os vazios e limitando a altura das edificações nas áreas circunvizinhas da capital”, ele afirmou ao tratar da ocupação babélica que nos rouba vazios que poderíamos habitar com poesia.

Ao encobrir o texto paterno, a artista, que é psicóloga por formação, não estava tão preocupada com o tema Brasília. Vivia outra nuance da experiência do vazio, o da ausência da pessoa que lhe era referência fundamental. No vídeo, findo o esforço de apagar o último discurso do pai, restaram poucas palavras visíveis: “Ameaçado mar” e “distante sempre”.

Saio do café, dirijo pela avenida L4 queimando de seca, de repente paro e escrevo antes que o pensamento voe: “A obra de Luciana Ferreira se traduz em uma busca por subverter narrativas, assumindo rasuras e erosões, para desbravar singulares objetos-poema, e, assim, possibilitar a construção de novos meios de habitar”.

Graça Ramos


© Jean Peixoto