Kim Martins: Safe House
curadoria de Malu Serafim
10/12—26/12/21




Como encarar o espaço a partir de uma perspectiva sônica? A onda sonora existe em unidade. Se deixarmos um gravador em uma sala por um determinado período, ele vai captar o estalar das paredes, os objetos se movimentando com a brisa que entra pela janela  e qualquer outra frequência que possa invadir o silêncio figurativo desse ambiente. Se ignorarmos as referências semióticas desses sons, restam texturas que serão percebidas enquanto um único organismo, uma única onda. Safe House atua dentro dessa perspectiva, todos os objetos dispostos no espaço, e aqueles que interagem com eles, são agentes ativos na construção dessa experiência expográfica.

As três obras partem de módulos eletrônicos que o artista manipula e investiga, nesse processo ele encontra suas possibilidades e limitações. A composição, visual e sonora, parte da necessidade compositiva desses módulos, mesmo que não se apoie somente nisso. Existe uma demanda de quais frequências aquele equipamento suporta ou quais são capazes de causar alguma perturbação em sua neutralidade. Paralelamente o som se relaciona com a perspectiva sensível desse módulo, como ele interage com o corpo, o espaço e em qual medida ele apresenta sua visualidade.

O foco não está necessariamente na visualidade do objeto em si, da televisão, da caixa de som ou da câmera da webcam, e sim nas relações que esses objetos compõem. A função original desses objetos é aqui negociada, a TV se transforma em vetor. Quais possibilidades sônicas esse aparelho permite no trabalho H.? Em que angulação o obturador da câmera no trabalho Até Quando For Possível O Retorno é ativado para que passe a batalhar com a luz que o invade e permita que a imagem comece a se movimentar?

A visualidade proposta por Kim também vibra e por consequência é sônica. Ambas as linguagens são relacionadas a frequências que se retroalimentam e constroem um circuito suspenso em constante atualização, ele se atualiza porque está em movimento contínuo e se suspende porque ocupa a todas as dimensões que permeia. O som se constrói a partir e em direção ao corpo e dentro de sua invisibilidade invade essa presença e a altera, ao mesmo tempo a imagem auxilia nessa experiência lisérgica, o som atravessa o corpo enquanto a imagem o engloba.   

O espaço se transforma em uma constante negociação entre o ambiente sônico que se estabelece e cada pessoa que o compreende, pessoas que se tornam autoras de uma nova realidade, o espaço e o tempo pertencem a cada uma delas e todas elas juntas compõem uma nova atmosfera. Esse ambiente ultrapassa o som e a imagem que sai das caixas e das telas, ele se acopla aos passos de quem entra na galeria, as ocasionais conversas, aos volumes de seus corpos, essa composição é de autoria absolutamente múltipla e singular, sua energia move, é fértil, essa relação também é frequência.

Para além dos ruídos que a presença humana traz para o espaço sônico, aqui acontece uma nova composição de sentido para a peça, ao ouvir a composição, o pensamento do ouvinte se confunde e se mistura com essas incursões sonoras, elas se retroalimentam.  

Kim constrói um espaço de recarga de energia, como um personagem de videogame que encontra essa safe house. Um recomeço que se baseia no asseguramento da memória, no enfrentamento de um eu em construção, assim como no jogo existe uma função direcionada a salvar o que foi percorrido até ali, aqui pode-se pensar em reinventar a memória  do que aconteceu até aqui.

Existe um potencial estado de transe que pode ser alcançado ao encontrar o espaço proposto por Kim, um convite para se comprometer com a experiência sônica, onde a composição é incansavelmente desvendada, sua duração pertence a quem aceita esse convite. A potência lisérgica está no loop, no movimento das imagens, nas luzes que invadem a escuridão do espaço da composição, em conjunto eles sugerem esse estado hipnótico.

O som permite uma relação de efeitos casuais e intencionais no espectador, graças a potências físicas e sociais já enraizadas em certas frequências. Uma composição é capaz de produzir efeitos muito particulares e pré determinados no corpo, mas ainda assim existe uma margem de causalidade que pertence unicamente ao ouvinte, nessa margem é onde o ouvinte passa a ser uma figura ativa na composição. Da mesma forma, o artista estimula o surgimento de visualidades que possuem previsões possíveis, mas ainda assim imprevisíveis.

Safe House se estabelece enquanto um ambiente vibracional, sensível e  seguro, retirando o espectador do espaço da cidade e o anexando em um organismo suspenso. Existe um convite explícito à imersão. O corpo ao experienciar o espaço passa a enxergar a si mesmo, vivenciando vigorosamente toda memória que o invade.

Malu Serafim






© Luna Colazante