Amante da Heresia, Arthur Cabral, Christus Nóbrega, Cirilo Quartim, Hilan Bensusan e Raísa Curty, May Wolf, Tiago Botelho: Hiperfluxo – vocês não viram nada ainda
22/6—21/7/19



Move fast and break things 
slogan de Mark Zuckerberg para o Facebook

O dinheiro dissolve tudo: tradições e lealdades tribais, obrigações e convenções sociais, valores morais. A permeabilidade do dinheiro permite que as atividades humanas sejam fragmentadas, distribuídas e geridas através de distâncias globais com cadeias de suprimento intercontinentais e uma força de trabalho cada vez mais atomizada, flexibilizada e precarizada. Poucas pessoas têm uma noção do todo. Ninguém exerce controle ou responsabilidade total. O dinheiro dribla nas fendas e encontra e extrai valor onde quer que possa dissolver uma estrutura anteriormente estável (inflexível, “ineficiente”). Ele configura nossos sonhos e desejos, reprograma nosso tempo, redireciona nossa atenção, esculpe e remodela nossos corpos.

Deleuze e Guattari identificaram o capital como um fluxo poderoso; um dos vários dispositivos ou “máquinas” que operam de acordo com sua própria lógica endógena. Não está a serviço da humanidade. Mas é de máquinas como esta que nossas vidas são em última instância tecidas. D & G estão simultaneamente encantados e chocados com o tsunami do fluxo de capital e seu poder de “destruição criativa” – sua capacidade de descodificar territórios. E confrontados com os fracassos de projetos de esquerda mais tradicionais depois de 1968, eles esboçam uma nova perspectiva sobre a política radical.

O que poderia superar o capital senão uma máquina MAIS RÁPIDA?

Assim, a política busca um “hiperfluxo”: um fluxo que se mova mais rápido do que o capital humano e possa manobrá-lo, ao mesmo tempo em que exercita o mesmo poder para perturbar e libertar-nos das restrições, padrões e estabilidades dos quais o próprio capital ainda depende.

Tecnologias em rápida evolução podem ser um lugar para procurá-lo. Nos anos 1990 e 2000, muitos ficaram entusiasmados com o potencial da internet como um espaço onde poderíamos descobrir uns aos outros e coordenar e compartilhar nossos interesses e projetos comuns, livres de imperativos comerciais. Talvez a uma velocidade que até o mercado não conseguiria acompanhar. Será que esse hiperfluxo finalmente nos levaria além do capital para um novo lugar de fraternidade e colaboração? Ao mesmo tempo, a tecnologia também estava transformando nossos corpos em ciborgues e oferecendo-se para transcender as restrições de nossas vidas humanas. Na internet, “ninguém saberia que você era um cachorro”.

Mas duas décadas depois, esse otimismo utópico já parece prematuro. Através de telefones celulares capazes de conectar com a internet para gerenciar cada vez mais nossas vidas e mídias sociais que capturam nossos compromissos, desejos e responsabilidades, o capital capturou a internet. E nossa experiência on-line está cada vez mais restrita a transações comerciais e moldada pelos imperativos de algumas corporações gigantescas que buscam lucros. Enquanto isso, as liberdades de transgressão que o mundo on-line parecia permitir – representar outras identidades e construir economias alternativas – são elas mesmas invadidas e derrubadas por um novo conservadorismo que usa as ferramentas da comunicação de massa para reafirmar valores tradicionalistas.

Política como velocidade é uma ideia antiga. Edmund Burke fundou o conservadorismo moderno como uma avaliação de quanto uma mudança é desejável em função de sua velocidade: deveríamos reconhecer a sabedoria coletiva de nossos ancestrais no sistema que eles nos deixaram, e ficar felizes em nos entregar a ela, em vez de perseguir ideias novas pouco testadas. Os progressistas pensaram que não estávamos avançando rápido o suficiente. Marx celebrou o potencial revolucionário do capital quase ao mesmo tempo em que o criticava. E nos chamou para seguir adiante e além. Não era para ele o “utopismo” de “alternativas”.

Nas confusões da política do século XXI, a filosofia do “aceleracionismo” está se tornando uma ferramenta popular e útil para mapear e compreender nossa paisagem político-cultural. Os conservadores se apegam às suas tradições e instituições enquanto ironicamente buscam desencadear os fluxos de capital que acabarão por dissolvê-los. Um outro grupo, os aceleracionistas de direita conhecidos como “Iluminismo Sombrio”, os aplaude em voz alta. Nick Land, o principal pensador aceleracionista de direita, acredita que o capitalismo é sinónimo de todos os fluxos disruptivos, incluindo a “Inteligência Artificial”. (Os mercados são algumas das nossas primeiras instituições de processamento de informações.) Para Land, não há outro fluxo mais rápido que o capital; há simplesmente novos aspectos ou novos nomes para a mesma força da qual o capital é um avatar. E para o qual a nossa atual existência humana é apenas um trampolim ao longo do caminho.

Os aceleracionistas de direita condenam todos à esquerda como “reacionários” por tentarem resistir às transformações perturbadoras que o capital traz. A esquerda busca novas maneiras de se posicionar e se explicar: Aceita que seu projeto é uma tentativa de “desacelerar” as mudanças e rupturas do capital? Trata-se de uma forma de nostalgia e nada mais? Aceita o rótulo “reacionário”? Ou busca fluxos alternativos que são mais rápidos que o capital e que o superam? Ou rejeita completamente a narrativa da velocidade?

Os artistas nesta exposição não se propuseram a “ilustrar” a história do aceleracionismo. Mas todos esses trabalhos se encontram envolvidos de alguma forma nos dramas desta maneira de pensar que parece prever cada vez mais o nosso presente. Não só as obras, todos os atores da rede são capturados, até mesmo a galeria ela mesma parece ter vendido sua regra de que “nada está a venda” e se tornado uma loja.

Há um número surpreendente de árvores na exposição. Nós tendemos a pensar na natureza e no artifício em oposição. A natureza é rica e sutil. Uma cornucópia fecunda de detalhes e complexidades desdobráveis em tantas outras. Os produtos fabricados, por outro lado, são de nossa criação e inerentemente rudimentares, maçantes e mortos.

No vídeo inspirada em Heidegger, caminhando entre árvores iluminadas artificiais, Hilan Bensusan medita sobre um capital que sugou toda a vitalidade natural para fora do mundo à medida que o transforma em seu próprio instrumento. Em justaposição, Artur Cabral apresenta um exemplo de “vida artificial”: uma árvore “falsa” ou virtual com processos reais de crescimento determinados por algoritmos e um tempo de vida projetado para se encaixar na duração de uma exposição. O aceleracionismo desafia nossa dicotomia natureza-artifício. À medida que expandimos o alcance e a complexidade dos produtos do capital e da inteligência artificial, poderiam eles eventualmente ultrapassar a natureza em riqueza e complexidade? Poderíamos um dia ter mais corporações do que espécies animais? E aonde então deveríamos colocar nossa lealdade?

Fora da galeria, a árvore do dinheiro de Cirilo Quartim apresenta uma síntese mais flagrante da natureza e do capital. As árvores são fontes invisíveis, sugando a água da terra e pulverizando-a como uma névoa fina no ar. O fluxo de capital e o fluxo da alma da árvore estão frequentemente em competição, mas são ao mesmo tempo curiosamente semelhantes.

O dinheiro, claro, flui por toda parte nesta exposição. Ele flutua no ar em uma peça de Cirilo e sua ilusão fantasmagórica atrai o desavisado para uma armadilha, em outra. A proliferação de produtos: câmeras, calçados, sacolas de compras e suas marcas testemunham a fecundidade do capital.

Mas o aceleracionismo também é um sonho com monstros. O sujeito humano não é mais visto como soberano, mas simplesmente um encontro temporário e contingente de fluxos. E à medida que as máquinas aceleram e executam seus cursos, elas criam novas formas e novos seres. Ciborgues. Animais. Demônios. Deuses, Inteligências Artificiais. Um carnaval pós-humano de seres amorfas. O escritor de horror H. P. Lovecraft é admirado por captar o senso de configurações de forças que são muito maiores e mais poderosas do que nós, que nos deixam loucos por serem incompreensíveis.

Dominando a galeria, um mural altamente ambíguo de Tiago Botelho. Figuras míticas emergem das ruas de uma Brasília regulamentada e bem organizada com um zelo revolucionário, desencadeando um confuso tumulto de animais, padrões e coisas em seu rastro. Mas isso é uma revolução ou contra-revolução? Essas figuras têm suas referências ancestrais indígenas e afro-culturais, deuses vingativos mais antigos, nos atraindo em direção a antigas certezas e padrões? Ou são algo novo? Novas reuniões de forças que são ainda mais dinâmicas e progressivas e desafiam a ordem moderna?

Hoje, como toda a estabilidade da vida está ameaçada pelo dinamismo cada vez mais voraz do capital, todos podemos sentir a atração das certezas ancestrais. Mas isso é mera nostalgia? Ou existem fluxos que podem ser redescobertos por uma estratégia de “indigenização”, extraindo e hibridizando o antigo e o novo, para trazer uma energia revigorante aos hiperfluxos de hoje? Assim como o DNA de espécies selvagens e herdadas de culturas pode revigorar os produtos cansados da agricultura industrial? A colagem tecnoxamânica rápida de Amante de Heresia que mescla anarco-punk, bricolagem cultural e ativismo anti-desenvolvimentista nativo sugere que sim.

Phil Jones

© Lucena