Amanda Naomi Yuki, Courinos, Danna Lua Irigaray, Igu Krieger, Rafael da Escóssia, Raissa Studart, Raylton Parga, Romulo Barros: É tudo mentira
curadoria de Suyan de Mattos
8/10—3/12/21
A mentira, como a arte, não é só uma falsidade qualquer. Ela tem que poder enganar – ela tem que exibir o efeito de verdade. O efeito de verdade é alcançável porque nos guiamos por aparências, aparições, já que nada mostra todas as caras, pelo menos não de uma só vez. Porque tem parte com o efeito de verdade, a mentira move montanhas; ela mesma se parece com atos de criadores muito poderosos como deuses, titãs e artífices. Haveria aqui também dois polos: os mentirosos onipotentes – aqueles que mentem de uma vez por todas como os que criam de uma vez por todas – e os mentirosos onipresentes – que se não mentirem alguma vez sua obra e seu nome caem por terra. A fé, é o que dizem, move montanhas. E é de fato muito pesado move-las, é preciso arrastar contra a gravidade que a verdade exerce sobre a fé. A mentira alicia o efeito de verdade na surdina já que uma mentira exposta colapsa; quando se diz, esse deus foi esculpido (com zelo e gênio talvez) de um bloco de pedra o deus desaba como um falso ídolo, mesmo que fique ainda a pedra ainda esculpida. A mentira não é transparente – ela se constrói nos bastidores das aparições. E como construção é que ela simula a verdade que é quem coordena e anima tudo isso já que sem efeito de verdade não há mentira – e talvez nem tomaríamos a arte como arte. É que a verdade é tida como desprovida de qualquer construção a não ser aquela natural ou divina que parecem, as duas, acima de qualquer suspeita por serem transcendentes demais ou comezinhas demais. Se tudo começou de uma vez por todas – de uma forma onipotente – houve apenas um efeito de verdade e, poderíamos dizer, apenas uma mentira autenticada; se tudo está começando a cada instante – de uma forma onipresente – há efeitos de verdade contínuos e, poderíamos dizer, uma fonte constante de mentiras chanceladas. Mas se o efeito de verdade não provém dessas chancelas e autenticações, ela é apenas um efeito enganoso, um efeito nas aparências, uma construção. Desmascarar uma mentira requer muitas vezes que se exponha sua construção – é o que faz o heterônimo de Igu Krieger no filme onde apresenta sua Cartografia mimética da melaleuca e onde termina dizendo que o artista é um mentiroso condenável, mas o sapo que se finge de folha não é tão condenável e é talvez o sapo que absolve o artista. A arte subsiste depois de exposta a mentira. Ela se desliga do efeito de verdade ainda que sem poder prescindir dele.
A arte é então talvez uma coisa completamente diferente. Ela tem um outro arranjo com o efeito de verdade. E o nome da arte é parte de sua dobrada e redobrada aliança com o efeito de verdade. A mentira é a arte que não diz seu nome. E se não diz seu nome se faz na moita e se dissolve se exposta. Já a arte se expõe. Por exemplo, se colocamos as fake news, as deep fakes etc em uma galeria de arte ou em uma coleção de ficção, elas subsistem de outro modo, algumas como artes melhores que outras. O que faz delas melhores deve ter alguma conexão com a tal dobrada e redobrada aliança com o efeito de verdade que a arte faz – e que talvez seja uma aliança única, sui generis. Tomemos thispersondoesnotexist.com. O aplicativo apresenta uma sequência de caras de pessoas inventadas (mentidas, simuladas, construídas). A pós-verdade – e a era política que ela inaugura – é acerca desses artifícios que capturam aquilo que faz a verdade parecer verdade mesmo sem ser verdade. Essa verdade artificial é o tronco comum de onde sai uma estrada para a arte e uma estrada para a mentira. O Autoretrato com máscaras, de Raylton José, que pode ser uma máscara ou uma cara, é apresentado como um precursor que pode gerar tanto uma parte do mundo quanto uma simulação de uma parte do mundo.
A arte, quando diz seu nome, tem um salvo-conduto: não é mais condenável se não tenta enganar, apenas expõe os bastidores dos efeitos de verdade. Ela escapa do condenável talvez porque não mente sobre a artificialidade do que expõe. Ela parece estar consciente de estar sendo vista, exposta; de ter as entranhas, onde o efeito de verdade é construído, à mostra. Michael Fried entendeu que essa consciência do observador provoca uma teatricalidade que ele contrasta com a ideia de absorção, uma inconsde verdade? A questão fica ainda mais bizantina. Os bizantinos se ocupavam com a santidade de uma imagem, de uma aparição – ela pode ser uma mera representação que é imitação, que é mentira já que é falsificação deliberada ou pode advir de um testemunho, como a imagem do santo sudário, ou mesmo da fotografia dele. Uma mera representação que não tem esse caráter teúrgico de contato direto com o original – e este é também o nome da trama toda, o original ao qual não se pode apontar o dedo para ninguém e dizer: aquela pessoa o forjou – pode ter um caráter santo se for sancionada como tal. Ou seja, algumas construções podem ser santificadas se forem sancionadas e, se o forem, como a arte como a entendemos hoje, podem se eximir de uma condenação mesmo quando o procedimento de construção do efeito de verdade tenha sido exposto. A absorção extrema da arte impercetível fica condenada para que a arte que diga seu nome possa ser absolvida. Está tudo bem, alguém assegura aos transeuntes, se a performance for apenas uma performance.
Esse asseguramento, de que o efeito de verdade está sob controle, é o que faz a asserção de que se trata de uma pretensa verdade – de um pretenso testemunho incorrigivelmente teúrgico –, é o que promove o ato de dizer de uma fonte que ela é confiável. Fonte confiável, de Amanda Yuki, trata dessa dobra: a mentira se esconde quando ela atua sobre a fé mesma que também produza o efeito de verdade; uma fonte de sangue que consegue passar por uma fonte de água. Dessa encruzilhada entre exposição e simulação, entre verdade e impercetibilidade, sai também a ironia – cândida e incendiária como em Notas de um passado presente de Courinos. A ironia é um pacto com o efeito de verdade em que o que importa mesmo é que esteja exposta de maneira explícita a inverdade. Aquilo que sai do trevo por onde passa quem tem parte com a artiricialização da verdade, está embrenhado em rastros, vestígios, aparições e espectros. Um desses não veio do fogo, de Danna Lua Irigaray e Raissa Studart, expõe os rastros e vestígios como reveladores de um acontecimento passado – mas também a revelação depende do efeito de verdade já que aqui a mentira é parte do que exibe a arte. Daí saem as lendas, como a da vaca que dá ouro quando vira A vaca Fortuna de Romulo Barros – a lenda talvez seja o futuro da arte impercetível, da dissolução da fronteira entre arte e mentira. Foi forjada a vaca que dava ouro ou foi encontrada e jamais desmascarada?
A imagem santificada bizantina é uma repetição que não é considerada como divergente. Como as pessoas cis que expressariam com suas caras e bocas uma fidelidade teúrgica à verdade original da anatomia que carrega o seu destino. Talvez a aparição seja um produto mesmo da repetição – mas a repetição pode sempre divergir. É o que aponta a caracterização analítico-poética da fofoca que pretende fazer Ciclo matricial da saúde precária do meio (ou pau no cu de 2) de Rafael da Escóssia. Os textos e imagens são sancionados e santificados porque a repetição traz sementes dispersivas, transfiguradas, travestidas, diabólicas já que atiradas em mais de um caminho. As aparições servem para remeter ao original, ou pelo menos que digam seu nome e exponham o nome do artífice que produziu os efeitos de verdade para que não enganem a ninguém. E, no entanto, os espectros e aparições tem eles mesmos um território paralelo, disfarçado, secreto. A era política da pós-verdade tem talvez sua sede nesse território. Mas quando entramos nele sem a bússola do original, do autêntico, do verdadeiro – sem a bússola que nos faz desconfiar que é tudo mentira – temos que nos orientar de uma outra maneira. Talvez apenas com sensibilidade desgovernada com a qual nos orientamos nos sonhos – dos quais poderíamos dizer, mas não dizemos, que é tudo mentira.
Hilan Bensusan
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